Dra. Ester Camila Gomes Norato Rezende comenta sobre: A aplicação do prazo decadencial à revogação da doação por descumprimento de encargo

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A aplicação do prazo decadencial à revogação da doação por descumprimento de encargo

Ester Camila Gomes Norato Rezende

Ao dispor sobre revogação de doação, o Código Civil Brasileiro prevê no art. 555 que “a doação pode ser revogada por ingratidão do donatário, ou por inexecução do encargo”. O art. 559, ao seu turno, dispõe que “a revogação por qualquer desses motivos deverá ser pleiteada dentro de um ano, a contar de quando chegue ao conhecimento do doador o fato que a autorizar, e de ter sido o donatário o seu autor”. Este art. 559 revela, numa primeira leitura, que a revogação da doação, seja qual for seu fundamento – ingratidão ou descumprimento de encargo –, sujeita-se ao prazo de natureza decadencial de um ano. De fato, o dispositivo legal em comento não dá azo à inteligência outra que não a subsunção das duas hipóteses de revogação de doação ao mesmo prazo especial de decadência.

Não obstante, verifica-se a existência de posicionamento doutrinário (por exemplo, ASSIS, Araken de. Comentários ao Código Civil Brasileiro, v. 5: Do direito das obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 2007; GAGLIANO, Pablo Stolze. O contrato de doação: análise crítica do atual sistema jurídico e os seus efeitos no direito de família e das sucessões. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008) e, sobretudo, jurisprudencial, no sentido de que o prazo decadencial para revogação de doação previsto no art. 559 do CC aplicar-se-ia tão somente à situação de revogação da liberalidade por ingratidão do donatário.

Após análise das fontes doutrinárias e jurisprudenciais alinhadas a este entendimento, constata-se que se valem, notadamente, da referência a julgados do Superior Tribunal de Justiça, que teriam consolidado a orientação de que o prazo decadencial empregar-se-ia unicamente à revogação da doação por ingratidão, sendo que, em caso de revogação por descumprimento de encargo o prazo seria a prescrição geral, que no Código Civil vigente é de 10 (dez) anos.

Guardada a devida vênia à autoridade da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, é certo que a ciência do direito não pode curvar-se simploriamente a um argumento de autoridade. Necessário é que se investigue cientificamente a verdadeira essência da situação jurídica em análise para que, com esteio nessa investigação e em critérios científicos, conclua-se pela natureza do prazo a que se vincula, prescricional ou decadencial, com o escopo de servir à segurança jurídica.

Como premissa conceitual, insta fixar o que se entende por prescrição e o que se entende por decadência, porquanto é a partir dessas definições que se alcançará com o devido rigor científico a conclusão sobre a natureza do prazo a que se subsume a revogação da doação.

Nesse ponto, traz-se à baila a irreparavelmente precisa lição de Humberto Theodoro Júnior, que a respeito da prescrição esclarece: “O direito subjetivo, embora desguarnecido da pretensão, subsiste, ainda que de maneira débil (porque não amparado pelo direito de forçar o seu cumprimento pelas vias jurisdicionais), tanto que se o devedor se dispuser a cumpri-lo, o pagamento será válido e eficaz, não autorizando repetição de indébito (art. 882) (…). Essa concepção facilita, e muito, a separação das ações que se submetem ao regime da prescrição daquelas que se sujeitam à decadência. Sempre que a parte não tiver pretensão a exercer contra o demandado (porque este não tem obrigação de realizar qualquer prestação em favor do autor), o caso não será de prescrição, mas de decadência. (…) Em resumo, para haver prescrição é necessário que: a) exista o direito material da parte a uma prestação a ser cumprida, a seu tempo, por meio de ação ou omissão do devedor; b) ocorra a violação desse direito material por parte do obrigado, configurando o inadimplemento da prestação devida; c) surja, então, a pretensão, como consequência da violação do direito subjetivo, isto é, nasça o poder de exigir a prestação pelas vias judiciais; e, finalmente, d) se verifique a inércia do titular da pretensão em fazê-la exercitar durante o prazo extintivo fixado em lei.”

Em relação à decadência, ensina Humberto Theodoro Júnior: “Os prazos extintivos de direitos desprovidos de pretensão é que constituem o objeto da decadência. (…) No campo dos direito potestativos, surgem faculdades, a cujo exercício se marca de antemão um termo, de sorte que ditas faculdades não mais se poderão fazer valer quando, por qualquer motivo, já tenha decorrido o tempo previsto. (…) Quando se trata de caducidade ou decadência (ou preclusão) o tempo se conta necessariamente desde o nascimento do direito potestativo (ou facultativo).”

Assim, em linha conclusiva, pode-se afirmar que a prescrição não fulmina o direito, mas, sim, a pretensão, no sentido de que torna a prestação em favor do titular do direito inexigível ao conferir ao devedor a defesa da prescrição. A decadência, por sua fez, alcança o direito, extinguindo-o pelo decurso do tempo, é dizer, o direito deixa de existir. Por essa razão, os prazos decadenciais se ligam aos direitos potestativos, isto é, àquelas faculdades conferidas ao titular que, em prol da segurança jurídica, caso não a exerçam em determinado lapso temporal, perdem-na.

A situação em tela, qual seja, a revogação da doação, cuida induvidosamente de faculdade conferida ao doador nas hipóteses legalmente autorizadas. Claramente, não se está diante de realidade que gera para o doador uma prestação a ser exigida do donatário ou de quem quer que seja, mas, sim, trata apenas da faculdade do doador de revogar a doação, desfazer o negócio jurídico calcado na liberalidade, quanto o donatário tiver incorrido em ingratidão ou o encargo fixado não tiver sido cumprido.

Ante essa constatação, a outra conclusão não se pode chegar senão que a revogação da doação realmente se sujeita a prazo de natureza decadencial e não prescricional. Como visto, na essência é caso de decadência porquanto se está diante do direito potestativo do doador de revogar a doação, direito este que deixa de existir caso não exercido no prazo decadencial fixado em lei.

Ora, mas quais são, então, as razões, que lastreiam o posicionamento (notadamente jurisprudencial) no sentido de que à revogação da doação por descumprimento de encargo se aplicaria o prazo geral de prescrição?

Na pesquisa que embasa o breve artigo, apurou-se que os julgados dos tribunais pátrios nesse sentido, bem como os doutrinadores que se esteiam apenas nessa conclusão jurisprudencial, referem-se principalmente à decisão do Superior Tribunal de Justiça no REsp 27.019/SP, julgado em 10/05/1993.

De início, já cumpre destacar que esta jurisprudência foi firmada na vigência do Código Civil de 1916 e sob a égide dos estudos doutrinárias nele baseados, onde, como esclarece novamente Humberto Theodoro Júnior, “embora fosse antiga a advertência de que não se deve confundir a prescrição com a decadência, o Código de 1916 não fez o menor esforço para distingui-las, e, o que é pior, reuniu todos os prazos extintivos sob o rótulo único da prescrição. Simplesmente ignorou a existência da decadência, o que, aliás, entre os Códigos primitivos, era comum. (…) Entre nós, a total ausência de referência no Código antigo ao fenômeno da decadência, fez com que a doutrina não tivesse parâmetro algum no direito positivo para construir a teoria delimitadora daquele fenômeno em relação à prescrição. Por outro lado, nem mesmo a prescrição chegou a ser definida na lei. Daí o aparecimento de teses pouco claras e de orientações não convergentes durante os longos anos de vigência do Código Beviláqua, quer a respeito da prescrição, quer a propósito da decadência”.

Acredita-se, pois, que confusão que marcou a matéria de prescrição e decadência no Código Civil de 1916 deu ensejo ao debate quanto à natureza do prazo em caso de revogação da doação e, no nosso modesto entender, à equivocada compreensão de que a revogação da doação se submeteria a prazo prescricional quando fundada em descumprimento de encargo.

Afinal, como já exposto, a revogação da doação cuida de direito potestativo e, por isso, sujeita a prazo prescricional. O fundamento que lastreia o direito de revogação da doação conferido ao doador não altera a natureza deste direito como potestativo, tampouco ocasiona o surgimento de uma prestação a ser exigida pelo doador ao donatário. Assim, tanto na revogação da doação por ingratidão, quanto na por descumprimento de encargo, está-se diante de direito potestativo do doador de desfazer o negócio jurídico. E, por essa razão, a ambas as situações de revogação de doação se aplicam o prazo de natureza decadencial. Acredita-se inexistir justificativa científica que explique o porquê de a revogação da doação, dependendo do seu fundamento, sujeitar-se a prazo ora prescricional, ora decadencial. Ao contrário, é imperativa a unicidade da natureza do prazo aplicável a esse direito conferido ao doador.

Acrescente-se a essa argumentação o fato de o Código Civil de 2002 disciplinar apenas na Parte Geral os prazos prescricionais, relegando à parte especial os prazos de natureza decadencial. Assim sendo, indubitável que o prazo do art. 559 do Código Civil decerto é decadencial.

Ainda, como já referido, a leitura do art. 559 do Código Civil não revela nenhuma exceção entre as hipóteses de revogação da doação e, consoante a comezinha lição hermenêutica, onde o legislador não distingue não cabe ao intérprete fazê-lo.

Por fim, impende refutar as razões expostas no mencionado REsp 27.019/SP. Aduziu o d. Ministro Eduardo Ribeiro que a situação da revogação da doação por descumprimento de encargo seria bastante diversa da revogação por ingratidão, porque aquela teria caráter oneroso e, por isso, não se poderia estabelecer prazo de um ano, no seu entender, demasiado curto. Além disso, acrescenta o acórdão do REsp 27.019 que o art. 1.184 do CC/1916 (correspondente ao art. 559 do CC/02) alude a “revogação por qualquer desses motivos”, sendo que “esses motivos” seriam os relacionados no artigo imediatamente anterior, 1.183 do CC/1916 (correspondente ao art. 557 do CC/02), que trata de revogação por ingratidão. Novamente, sem embargo desse respeitável posicionamento, entende-se que as razões lançadas no REsp 27.019 não se sustentam, pois o caráter oneroso da doação com encargo não altera a natureza do direito potestativo do doador de revogá-la. Do mesmo modo, acredita-se claro que os “esses motivos” mencionados no art. 1.184 do CC/1916, correspondente ao art. 559 do CC/02, relacionam-se aos motivos para revogação de doação tratados na respectiva Seção do Código Civil e não no artigo imediatamente anterior. De mais a mais, não se pode admitir que uma fria análise topográfica do dispositivo legal contrarie a natureza do direito em análise, esta sim a baliza maior para definição da natureza do prazo como decadencial.

Fonte: HTJ advogados

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